Musica de Oswaldo Montenegro
Eu conheço o medo de ir embora
Não saber o que fazer com a mão
Gritar pro mundo e saber
Que o mundo não presta atenção
Eu conheço o medo de ir embora
Embora não pareça, a dor vai passar
Lembra se puder
Se não der, esqueça
De algum jeito vai passar
O sol já nasceu na estrada nova
E mesmo que eu impeça, ele vai brilhar
Lembra se puder
Se não der esqueça
De algum jeito vai passar
Eu conheço o medo de ir embora
O futuro agarra a sua mão
Será que é o trem que passou
Ou passou quem fica na estação?
Eu conheço o medo de ir embora
E nada que interessa se pode guardar
Lembra se puder
Se não der esqueça
De algum jeito vai passar
“Saber muito e não saborear nada – de que adianta isso? Bonaventure
29 de set. de 2009
22 de set. de 2009
Adélia Prado
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
18 de set. de 2009
Sociologia da Religião
A sociologia da religião tem por objeto de estudo a natureza do fenômeno social religioso, como componente da estrutura social. O estudo da sociologia religiosa desenvolve-se relacionado com o esforço por compreender o fenômeno religioso em todos os campos da atividade social. Numerosas são as tendências da explicação sociológica da religião.
Porém, algumas perspectivas de análise precederam o funcionalismo deste ramo da sociologia. Entre elas, notam-se as obras de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.
Este estudo tem por objetivo debruçarmos, de forma bem objetiva, nas linhas de pensamentos destes estudiosos, de maneira que possamos compreender os fenômenos religiosos atuais e, sem pretensão alguma, verificar de que forma esses fenômenos se apresentam nas instituições religiosas atuais, mais precisamente, na qual congrego.
KARL MARX
Marx redefiniu o objetivo da história em termos do homem como ser que busca tornar-se inteiramente humano, o que não consegue enquanto permanecer alienado pela religião.
As bases para as afirmações fundamentavam-se em que a religião é o meio de um pseudo-auto-realização, ou seja, o homem, que procura um super homem na realidade fantástica do céu, não deseja apenas encontrar uma aparência de si mesmo, apenas um não-homem no reino onde busca e deve buscar sua realidade verdadeira”.
Dando corpo às suas teorias, deixando de lado os pressupostos feuerbachianos e introduzindo outros elementos em suas formulações, expõe que o mundo dos fenômenos é um mundo de alienação, onde vê como necessidade o fim dessa alienação, através da transformação do mundo.
Marx acredita que a solução de todos os problemas incluindo os “teóricos”, se concretiza na práxis, advertindo que a religião é uma forma teórica de alienação, atrás ou sob a qual há formas práticas: a crítica do céu se transforma em crítica da terra, a crítica da religião em crítica da lei, a crítica da teologia em crítica da política.
Para Marx, o homem alienado sente a necessidade da religião, buscando-a como ópio de que precisa para suportar a divisão, a miséria real.
Contudo, Marx, num primeiro momento vê a religião como alienação, a partir de suas formulações e estudos, passa a ver a religião como Ideologia .
(...)”Segundo Marx, a religião não terá mais razão de ser quando a vida social aparecer como obra de homens livremente associados, agindo conscientemente e mestres de seu próprio movimento social.”
ÉMILE DURKHEIM
No período anterior à primeira guerra mundial, Durkheim afirmou que a religião é uma realidade sui generis , isto é, que as representações religiosas ou símbolos não são ilusões, mas elementos constitutivos da sociedade.
Em seus estudos, concentrou o interesse para que considerava ‘coisas sociais’ e a religião para ele era uma dessas coisas sociais por excelência.
A religião, segundo Durkheim, sofre uma divisão de toda a experiência humana em 2 esferas opostas: Profano e Sagrado.
Profano: atem-se à experiência da vida diária, da qual o trabalho é o tipo mais significativo.
Sagrado: seria diferente dessa esfera, posicionando-se fora dessa esfera, criando uma atitude de respeito e reverência. O sagrado se oposicionando ao profano.
Durkheim mostra o caráter social da religião considerando seu objeto, que, oculto atrás da grande heterogeneidade de veículos e símbolos que lhe dão expressão concreta, se traduz no grupo, na sociedade. Para ele, Deus é a essência, a substância da sociedade, o grupo modificado em entidade viva e personalizado. Pelas próprias palavras de Émile Durkheim, “os ritos religiosos são antes de qualquer coisa meios pelos quais o grupo social periodicamente se afirma.”
MAX WEBER
Weber fundamenta seu estudo sobre a religião como elemento causal independente, que, em toda a história, influi na ação social.
Para Weber não é o fenômeno religioso, mas sim seu comportamento ao qual dá origem, pelo fato de se fundamentar em certas experiências particulares, em representações, símbolos e fins determinados.
Weber se interessa pelo ‘significado do mal, sofrimento e morte’. Ele vê tais elementos como necessários à vida do homem e insolúveis em termos meramente científicos, sendo esses elementos provocativos, importantes ao desenvolvimento e na orientação da ação social do homem.
O elemento principal para análise sociológica da religião é o comportamento do homem frente a forças sobrenaturais. Estando tais forças fora da dimensão cotidiana, o homem criou uma simbologia para entrar em contato com elas, representá-las e, principalmente, compreender sua ação.
O permanente domínio de si mesmo, aliado à vontade metódica, teve como objetivo a racionalização do comportamento individual, com reflexos na gestão dos negócios. Assim, o tipo ideal puritano observado por Weber estaria pronto a estruturar empresas e racionalizar a economia. Segundo as leis de Deus, o que é condenável para a ética protestante são o usufruto dos bens e suas conseqüências (ociosidade, tentações da carne, etc). A dedicação ao trabalho leva o protestante a se dedicar ao trabalho, racionalizando essa dedicação, preenchendo assim os desígnios de Deus e, em conseqüência disso a produtividade e a austeridade, dando origem a um estilo de vida definindo diretamente a essência do capitalismo, criando um clima propício ao seu desenvolvimento.
A partir de todo o pensamento Weberiano, a sociologia da religião não se limita a uma estrita explicação do fenômeno religioso em si.
Sua problemática se resume em preocupar-se, ao mesmo tempo, como a conduta religiosa dirige ou condiciona em parte as outras atividades humanas, sendo reciprocamente condicionada por elas.
Trocando em miúdos
“Havia um rei muito poderoso que não conhecia limites ao seu poder e à sua vontade. Ele quase se sentia onipotente. Um semideus. Tudo o que ele desejasse tinha de ser cumprido com medo e respeito por seus súditos e pelo povo que vivia na região. Um dia, caminhando pelo campo, viu no horizonte uma moça formosa e bonita que o deixou perdidamente apaixonado. Ele, que nunca crera no amor à primeira vista, não conseguia tirar da cabeça aquela imagem da moça que se confundia com o céu avermelhado e as nuvens a se misturarem com o campo no horizonte. Enviou seus melhores homens para descobrir quem ela era e foi à sua casa pedir ao pai a mão da filha em casamento. O pai, com alegria e também com certo temor, consentiu e assim houve uma grande festa. Foi uma das maiores festas de casamento de todos os tempos naquela região. Todos os convidados comentavam sobre a beleza da nova rainha e da felicidade do rei. Com o passar do tempo, o rei, que não se cabia em contentamento, começou a perceber que havia algo de errado no ar. O contentamento com sua rainha já não era suficiente para encher o ambiente com aquele algo a mais que sempre buscamos em nossa vida. Após prestar atenção e pensar muito, percebeu que faltava algo no olhar de sua rainha. Seus olhos não brilhavam! Chamou-a e perguntou se lhe faltava algo ou se alguém tinha lhe faltado com o respeito. Ela respondeu que não. Tudo estava em ordem. O rei perguntou por que os olhos dela não brilhavam. Ela respondeu que a falta de brilho em seus olhos era sinal de que ela o respeitava muito, mas não o amava. Ela não tinha tido a liberdade de escolher o seu amado. Ela era, e prometia ser, uma esposa dedicada e fiel, mas não poderia lhe prometer o amor. Pois o amor vem com a liberdade. E se fosse a vontade dele, ela continuaria cumprindo seu papel de esposa rainha com toda a dedicação e fidelidade. Mas, se ele quisesse que ela o amasse de verdade deveria deixá-la ir, sem nenhum tipo de represália à sua família, e esperar que ela começasse a amá-lo livremente, sem nenhuma pressão. Esperar amá-lo livremente significava também a possibilidade de não amá-lo e, portanto, de não tê-la de volta. O homem todo-poderoso viveu profunda angústia e se viu num dilema. Se deixasse seu poder falar mais alto, ele a manteria junto de si com toda a certeza, mas não teria uma mor e sim uma serva ou, no máximo, uma esposa dedicada e fiel. Se deixasse seu amor falar mais alto, ele respeitaria a liberdade dela, não exerceria seu poder e correria o risco de perdê-la. Ele sabia que só assim seu amor poderia ser correspondido e seria realmente feliz. O rei descobriu que para amar e ser correspondido era preciso correr o risco de perder a pessoa amada. Amor combina com liberdade (que implica riscos) e não com onipotência. O outro lado da relação de poder é a obediência e não o amor ou a liberdade”.
Como disse o mesmo que relatou a história acima, quem tem compaixão do sofredor, não impõe seu poder.
Do que a igreja atual mais necessita para se manter viva, forte e soberana?
O que seus ajuntamentos semanais de pessoas buscam?
Marx e Durkheim entendem que os indivíduos são freqüentemente envolvidos como numa grande roda de acontecimentos, os quais elas próprias não são capazes de compreender e sequer analisar. Os três pensadores, embora de forma distintas, em quase tudo encontram um ponto de convergência: o individualismo é uma criação de uma cultura capitalista.
Vamos às Escrituras
Em Atos 17 é registrada a viagem de Paulo a Atenas. Enquanto esperava a chegada de seus companheiros Silas e Timóteo, ficou sozinho na capital cultural do mundo. Qual deveria ser a reação de um cristão que visita uma cidade que é dominada por ideologias ou religiões não cristãs, uma cidade que pode ser esteticamente magnífica e culturalmente sofisticada, mas moralmente decadente e espiritualmente morta .
Quais foram as suas observações?
Idolatria – templos fabulosos onde havia cultos a deuses e articulados debates políticos e filosóficos, mesmo porque Paulo detinha uma formação intelectual que alicerçava seu gosto, bem como aos habitantes da cidade de Atenas ;
Ciúme – Paulo sentiu uma agitação profunda de ciúmes pelo nome de Deus, ao ver seres humanos tão depravados, a ponto de dar aos ídolos glória que achava ser devida apenas a Deus ;
Ação – A indignação diante de tudo o que viu, motivou-o. Não o levou a agredir o que o desagradava, mas a pensar numa maneira de atingir àqueles que não se encontravam nos templos, de forma que estudiosos, escritores, jornalistas, dramaturgos, etc., promovendo sensatez na pregação do Evangelho ;
Discurso – profundidade no conhecimento e poder em sua motivação. Paulo já vislumbrava uma humanidade ensimesmada e egocêntrica .
Muitos rejeitam o evangelho não por achá-lo falso, mas por achá-lo insignificante .
O que difere os tempos atuais daquele tempo?
Falta-nos a indignação de Paulo.
Paulo viu, sentiu e falou.
Segundo Paulo Freire, quem denuncia, anuncia.
“Não há possibilidade de pensarmos o amanhã, mais próximo ou mais remoto, sem que nos achemos em processo permanente de “emersão” do hoje, “molhados” do tempo que vivemos, tocados por seus desafios, instigados por seus problemas, inseguros ante a insensatez que anuncia desastres, tomados de justa raiva em face das injustiças profundas que expressam, em níveis que causam assombro, a capacidade humana de transgressão da ética. Ou também alentados por testemunhos de gratuita amorosidade à vida, que fortalecem, em nós, a necessária, mas às vezes combalida esperança.(...) Pensar o amanhã é assim fazer profecia, mas o profeta não é um velho de barbas brancas longa e brancas, de olhos abertos e vivos, de cajado na mão, pouco preocupado com suas vestes, discursando palavras alucinadas. Pelo contrário, o profeta é o que, fundado no que vive, no que vê, no que escuta, no que percebe, no que intelige, a raiz do exercício de sua curiosidade epistemológica, atento aos sinais que procura compreender, apoiado na leitura do mundo e das palavras, antigas e novas, à base de quanto e de como se expõe, tornando-se assim cada vez mais uma presença no mundo à altura de seu tempo, fala quase adivinhando, na verdade, intuindo, do que pode ocorrer nesta ou naquela dimensão da experiência histórico-social.(...) Para mim, ao repensar nos dados concretos da realidade, sendo vivida, o pensamento profético, que é também utópico, implica a denuncia de como estamos vivendo e o anuncio de como poderíamos viver. É um pensamento esperançoso, por isso mesmo. É neste sentido que, como o entendo, o pensamento profético não apenas fala do que pode vir, mas, falando de como está sendo a realidade, denunciando-a, anuncia um mundo melhor. Para mim, uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia o que virá necessariamente, mas o que pode vir, ou não. O seu não é um anuncio fatalista ou determinista. Na real profecia, o futuro não é inexorável, é problemático. Há diferentes possibilidades de futuro. Reinsisto em não ser possível anuncio sem denuncia e ambos sem o ensaio de uma certa posição em face do que está ou vem sendo o ser humano.(...)
Virou um fato bizarro “trabalhar para os pobres” na igreja, mesmo porque não é evangelicamente correto apresentar-se como pobre na igreja. O individualismo distanciou a igreja da Igreja. A fonte da dignidade humana não é Deus, mas um ídolo: o dinheiro elevado à condição de fim último, absoluto, Mamom .
Segundo Jung Mo Sung, “o pobre na nossa sociedade idolátrica é considerado, portanto uma pessoa sem valor, indigna, incompetente. Alguém que não tem valor e dignidade também não tem direitos. Dentro dessa compreensão, não faz sentido dizer que os pobres são ‘preferidos’ de Deus e que a igreja deve fazer a opção por eles, porque no fundo as pessoas acreditam em outro deus, que não é o Deus de Jesus.”
A Conexão
O que particularmente encontramos nos pensamentos de Weber, Durkheim e Marx que se apresentam, mesmo que de forma velada em nossa ‘rotina’ cristã?
Para Weber o que é legítimo é aquilo que é aceitável, aquilo que o povo consente. Para Durkheim, numa sociedade simples há consciência coletiva e na sociedade complexa há consciência individual e solidariedade e Marx vê que só através de uma práxis (prática), que é uma ação consciente e intencional, muda-se uma situação.
Segundo Mo Sung, o capitalismo promete o paraíso da abundância de consumo. Quanto mais técnica, mais produção e, portanto, mais satisfação de desejos de consumo, ratificando ainda mais o capitalismo como um sistema materialista-consumista, ou seja, indivíduos buscando satisfação a todo o tempo. Hoje temos cultos com objetivos afins. Buscar uma benção específica com campanhas de tantos dias, jejuns coletivos para fins individuais, uma cura, uma “porta” de alguma coisa, com direito a souvenir ao final do culto, muitas vezes uma chavinha dourada.
Alia-se salvação a uma vida plena, próspera e abundante, no sentido de ter para se consumir, a prosperidade velada.
De uma forma geral vivemos uma crise ética, como bem elaborou Ricardo Quadros Gouvêa . O que cabe à igreja é o “explicar das coisas”, não com versículos bíblicos e, na outra ponta da espada, regras e conceitos simplistas de auto-ajuda.
Talvez, como início de conversa, retomarmos um trecho de uma carta ao povo da Galícia, escrita por Paulo:
Porém vocês, irmãos, foram chamados para serem livres.
Mas não deixem que essa liberdade se torne uma desculpa para
permitir que a natureza humana domine vocês.
Pelo contrário, que o amor faça com que sirvam uns aos outros.
Pois a lei inteira se resume em um mandamento só:
“Ame os outros como você ama a você mesmo”
Mas, se vocês agem como animais selvagens, ferindo e prejudicando uns aos outros, então cuidado para não acabarem se matando!”
Gl.5.13-15
E, se há algo a fazer, que seja como a Canção Óbvia, de Paulo Freire , tomando-a em forma de oração, como norte para a Igreja de Cristo:
Escolhi a sombra desta árvore para
repousar do muito que farei,
enquanto esperarei por ti.
Quem espera na pura espera
vive um tempo de espera vã.
Por isto, enquanto te espero
trabalharei os campos e
conversarei com os homens
Suarei meu corpo, que o sol queimará;
minhas mãos ficarão calejadas;
meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;
meus ouvidos ouvirão mais,
meus olhos verão o que antes não viam,
enquanto esperarei por ti.
Não te esperarei na pura espera
porque o meu tempo de espera é um
tempo de quefazer.
Desconfiarei daqueles que virão dizer-me,:
em voz baixa e precavidos:
É perigoso agir
É perigoso falar
É perigoso andar
É perigoso, esperar, na forma em que esperas,
porquê esses recusam a alegria de tua chegada.
Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me,
com palavras fáceis, que já chegaste,
porque esses, ao anunciar-te ingenuamente ,
antes te denunciam.
Estarei preparando a tua chegada
como o jardineiro prepara o jardim
para a rosa que se abrirá na primavera.
Bibliografia:
Marx, Karl – O Capital, 1965
Sung, Jung Mo – Se Deus existe, por que há pobreza? Ed. Reflexão – 2008-pp35
Stott, John R.W. – A mensagem de Atos: Até os confins da Terra – Ed. ABU – 2008, pp.311
Freire, Paulo – Pedagogia da Indignação – Editora UNESP -
- Gouvêa, Ricardo Quadros – A Piedade Pervertida – São Paulo
- NTLH - Bíblia
- Freire, Paulo – Pedagogia da Indignação – Editora UNESP
4 de set. de 2009
Não entender
"Não entendo. Isto é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice Lispector
A Descoberta do Mundo
Editora Rocco
Dar-se enfim
O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava escarniçadamente prendendo. E de súbito o sobressalto: ah....abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada!
E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre!
Até que se percebe que nesse espraiar-se está o prazer muito perigoso de ser. Mas vem uma segurança estranha: sempre ter-se-à o que gastar.
Não ter pois avareza com esse vazio-pleno: gastá-lo.
Clarice Lispector em A Descoberta do Mundo - Editora Rocco
Para o Zé - Adélia Prado
Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia,eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate.
Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.
Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”. Aprendo.
Te aprendo, homem.
O que a memória ama fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor.
Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.
O texto acima foi extraído do livro “Poesia Reunida”, Editora Siciliano – São Paulo, 1991, pág.99.
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